Velho Chico eleva padrão do gênero e se firma como um grande folhetim da TV

Divulgação/TV Globo

Foram, no mínimo, impecáveis os últimos capítulos de "Velho Chico", novela de Benedito Ruy Barbosa com direção de Luiz Fernando Carvalho. De fato, o adjetivo "impecável" é um dos mais recorrentes para classificar a atual trama das 21 horas da TV Globo que, é bem verdade, não conquistou definitivamente as atenções do público do horário e, já passada mais da metade de sua duração, dificilmente o fará. 
Repleta de clichês folhetinescos, "Velho Chico" consegue, mesmo utilizando ganchos e tramas recorrentes do gênero, cativar pelo belo tratamento dado ao produto. O texto de Barbosa é um dos mais ricos da trajetória do autor na televisão e não são raros os capítulos que não tenham, pelo menos, um diálogo marcante ou emocionante. Soma-se a isso a postura do diretor artístico da trama, que sempre trabalha como um co-criador e imprime sua estética caprichosa, fugindo da tradicional função de apenas cumprir o que diz o texto.
Desde o início mostrando ao público que é um folhetim diferenciado, "Velho Chico" construiu, na semana que passou, talvez o bloco de capítulos mais bem amarrado de toda sua duração, composto por acontecimentos cruciais para o andamento da história, diálogos emocionantes e cenas concebidas pela direção para parecerem verdadeiras pinturas, que poderiam ficar eternamente emolduradas nas telas dos aparelhos de televisão.
Arrisco dizer que nunca houve um produto como "Velho Chico" no horário das nove e, a cada nova cena, confesso que fico ainda mais deleitado. É uma novela que propõe ao público um exercício para que nos acostumemos com o melhor, para que elevemos o nosso padrão. Infelizmente, a trama não é um fenômeno de audiência e deveria ser mais valorizada. Abaixo, então, alguns dos motivos que fazem a novela de Barbosa já poder ser considerada uma das grandes obras da televisão brasileira.

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1) Diálogos inspirados

Benedito Ruy Barbosa sempre se dedicou a escrever novelas rurais, com traços bastantes característicos do interior do país. Tirando o recente remake de "Meu Pedacinho de Chão", adaptação teatral de uma de suas primeiras tramas, nenhuma outra é tão inspirada como "Velho Chico". Os diálogos dos personagens dão a impressão que o autor e seus colaboradores têm um cuidado prestimoso com as palavras, que resulta grandioso no ar. Pode ser uma simples cena de amor, uma briga ou, até mesmo, uma cena silenciosa. Tudo ali é dito de maneira precisa e emocionada, mesmo que, para isso, palavras não sejam necessárias. Isso engrandece, também, as tramas em si, que poderiam ser apenas repetições de clichês novelísticos, como amores proibidos, famílias rivais e disputas por poder. "Velho Chico" poderia ser apenas mais uma novela, mas basta ouvir um dos diálogos de Barbosa para perceber o que a diferencia das demais.

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2) Diretor e co-autor

Alguns diretores se destacam da maioria por mostrarem que têm, dentro de suas cabeças, um universo próprio e muito rico, que também pode envolver o público. Esse é o caso de Luiz Fernando Carvalho, que costuma usar aspectos lúdicos e cores marcantes em todos os seus trabalhos. Com "Velho Chico", a meu ver, ele chegou ao ápice de sua trajetória da televisão. Ele empresta ao texto de Barbosa uma estética poucas vezes vista em um produto do gênero. A fotografia, o enquadramento e os movimentos de câmeras dão um toque muito especial ao roteiro e funcionam, também, como uma co-autoria do diretor. Alguns elementos do trabalho, no entanto, causam certo estranhamento no público (mal) acostumado à "perfeição" do padrão imposto ao gênero. Um exemplo disso é o fato de os personagens aparecerem com os tons de pele mais escurecidos, suados e, até, um pouco sujos de terra. Mas, afinal, pergunto eu, trata-se de uma novela que se passa no interior do Nordeste, que retrata a vida de pessoas que vivem do que a terra proporciona, sendo assim, como o público esperava vê-los? Seguindo a lógica do padrão imposto até aqui, a resposta para isso seria: impecavelmente arrumados, maquiados e destoados daquele cenário.

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3) Alegorias para refletir personalidades

Ao invés de se discutir a qualidade do que está sendo apresentado, uma das grandes questões de "Velho Chico" tem sido: que diabos o Antonio Fagundes está fazendo com essa peruca? Bom, tentemos ver isso a partir de outra perspectiva e tentar entender o motivo, de fato, pelo qual ela está ali. Afrânio de Sá Ribeiro era um jovem idealista, impetuoso e que nutria o desejo de construir sua vida longe de todo o "reinado" de sua importante família. A morte do pai o obrigou a voltar para casa e assumir a função de "Coronel Saruê", como são conhecidos todos os chefes de seu grupo familiar. O título traz, também, todo o poder regional antes atribuído ao pai dele e exige, ainda, que Afrânio assuma a postura que se espera de alguém na sua posição social. A passagem de tempo da história trouxe ao público a figura de um Antonio Fagundes que mais parece um carro alegórico, cheio de cores e adereços, que contrastam imensamente com a aparência do personagem na primeira fase, quando tinha o rosto de Rodrigo Santoro. Por que, então, tanta diferença? Por que tantas cores? Por que essa peruca? Exatamente para mostrar uma personalidade cheia de contradições, para dizer, sem que palavras sejam necessárias, que aquele homem assumiu a postura de alguém que não queria ser, mas que lhe foi imposta pela tradição familiar. A peruca, as cores, o andar e o falar de Afrânio são, agora, reflexos dos exageros e da imponência que o poder lhe conferiu, e que ele tanto desprezava. Isso causa, ao personagem, um imenso e rico conflito interno, típicos de alguém que anulou sua personalidade para assumir um papel que os outros, mas especialmente o poder, lhe impuseram. Afrânio é uma alegoria que se presta a representar um tipo de poder muito comum por aí afora, que todos nós já vimos, talvez apenas com menos cores e adereços. E este é apenas um exemplo, mas todos os personagens também têm suas personalidades refletivas por seus "figurinos alegóricos".

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4) Atuações impecáveis

Outra característica marcante de Carvalho é a forma com que ele trabalha com seus atores. Tal como no teatro, ensaios, leituras e reuniões marcam o processo criativo do diretor, que só consegue atingir esse nível de excelência, é bem verdade, se tiver um elenco talentoso. Em "Velho Chico", é muito prazeroso ver os trabalhos de Domingos Montagner, Selma Egrei, Christiane Torloni, Camila Pitanga, Irandhir Santos, Carlos Vereza,  Lucy Alves, José Dumont, Marcélia Cartaxo e Marcos Palmeira. Nomes menos conhecidos, como Suely Bispo e Zezita Matos, também impressionam, além, é claro, do elenco da primeira fase, que trazia ótimos desempenhos de Tarcísio Meira, Rodrigo Lombardi, Chico Diaz, Fabiula Nascimento e Carol Castro. O cuidado fora do comum com o elenco também é um dos elementos que enriquece a trama.

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5) Discussão política relevante

Considero "Velho Chico" um retorno de novelas que têm algo a dizer, algo a acrescentar ao público. É claro que elas são teses aprofundadas ou estudos intelectualmente avançados, nem devem se propor a isso. Mas, acho importante ver um folhetim com discurso, que propõe reflexão, nem que seja por uma cena. Aqui, o principal debate é político e, a meu ver, vem em boa hora, em um momento muito tumultuado e ávido por mudanças. Grotas do São Francisco, a pequena cidade da novela, guarda a tradição de más condutas de administradores públicos brasileiros. É um lugar dominado por uma minoria, que nunca sai do poder, mesmo não estando fisicamente no centro dele. É um lugar de demagogias, de promessas falsas, um lugar em que o teto de uma escola quase desaba sobre os alunos, mas que, ao mesmo tempo, acaba de inaugurar uma estrada que dá para lugar nenhum e só irá beneficiar o poderoso empresário local, que precisa dela para seus negócios. Dizem alguns: mas isso é irreal! Não há mais coronéis no Brasil! Será que não há mesmo? Será que eles não deixaram de usar chapéus e cavalos e passaram a andar de terno e carros importados? Não são eles alguns empreiteiros, grandes empresários ou algum outro tipo de endinheirado que financia campanhas e coloca políticos no Congresso para atender seus próprios interesses? Além disso, ainda há discussões sobre cooperativismo, valorização da terra, preconceito e a qualidade do que é oferecido à população, que são igualmente interessantes.

6) Sonorização e trilha sonora

"Velho Chico" é uma novela musical. Tanto a trilha sonora instrumental como as músicas de grandes artistas brasileiros servem como recurso narrativo, além de servirem como um elemento a mais para deleitar o público. As cenas são costuradas pela excelente trilha original de Tim Rescala, parceiro de Luiz Fernando Carvalho em inúmeros trabalhos, e pelas canções marcantes de Maria Bethânia, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Gal Costa, Caetano Veloso e Tom Zé. Ainda há artistas regionais e pouco conhecidos, como o caso de Paulo Araújo, que canta "Margem" em muitas das sequências que envolvem o Rio São Francisco. Muito da poesia da novela também vem da música.

Comentários

  1. a A NOVELA,ESTÁ LINDA E A MIM ME ENCANTA COMO O AUTOR ESTÁ RESGATANDO À CULTURA POPULAR,A FESTA JUNINA, ONTEM O TEXTO SOBRE A FESTA DE SÃO GONÇALO.A NOVELA..ESTÁ LINDA..

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