"Fleabag" busca comédia em situações adversas e encontra muita humanidade

Divulgação/BBC

É possível provocar risos a partir das desgraças da vida? Dos problemas, de situações-limite, do fundo do poço? Qualquer humorista diria que, mais do que possível, são esses os cenários mais ricos para a construção de uma boa comédia. O céu azul, os pássaros cantando e a beleza do dia a dia quase nem são inspirações para o humor, que sempre encontra espaço nas adversidades, frustrações, vergonhas, fracassos e nas tristezas, ainda que as pessoas diretamente envolvidas nos problemas não percebam isso.
Fazer humor com situações difíceis e até traumáticas, sem qualquer pudor e com um texto extremamente inteligente, é a proposta da série "Fleabag", comédia escrita e protagonizada por Phoebe Waller-Bridge, um dos talentos mais interessantes que surgiu no gênero nos últimos anos. A personagem central, que tem 30 e poucos anos, se apresenta como inconveniente, cínica e desajustada, ao mesmo tempo em que mostra carisma e perspicácia. A família a encara como um "mal necessário", quase uma ovelha negra, imprevisível e capaz de causar as maiores saias justas.
Enquanto tenta fazer deslanchar uma pequena cafeteria, toda decorada com desenhos e referências a porquinhos da Índia, a personagem enfrenta momentos difíceis.Traumatizada e se sentindo culpada pela morte de uma amiga, a protagonista se coloca em problemas como uma forma inconsciente de ter punições que julga necessárias. Toma decisões ruins relacionadas a dinheiro, à convivência com os familiares e até sobre sexo, atividade usada por ela como uma maneira de fugir dos conflitos, não sendo raro que acabe arrumando outros com isso.
Na primeira temporada, a personagem de Phoebe Waller-Bridge vive um relacionamento de idas e vindas com Harry (Hugh Skinner), um namorado sensível e delicado do qual ela não gosta tanto. Mesmo a família o considerando o homem ideal, a protagonista sente que não há espaço para a segurança que o companheiro oferece. Por isso, se aproveitando de uma obsessão de Harry por limpeza, ela termina com o namorado sempre que o apartamento precisa de uma faxina, afinal, antes de sair, ele deixa tudo brilhando.
Os problemas sentimentais atingem outro nível quando, já na segunda temporada, a personagem se interessa pelo padre que vai celebrar o casamento do pai e da madrinha, que vivem um relacionamento desde a morte da mãe dela. Vivido por Andrew Scott, o religioso tem a fé testada pela protagonista que nem em Deus acredita.
Divulgação/BBC
A família é um capítulo à parte da vida da personagem. Ela vive uma relação conturbada com a irmã Claire (Sian Clifford), uma mulher travada e insegura; é alvo dos comentários maldosos do cunhado machista e alcoólatra; e é vista como um estorvo pela madrinha e madrasta, sentimento sempre disfarçado por gestos educados e palavras agradáveis. Com o pai, a personagem tem uma relação distante, ainda que pontuada por momentos de afeto.
"Fleabag" tem no texto a principal qualidade. O roteiro é anárquico, politicamente incorreto, ácido e desconcertante. Os diálogos rápidos, quase sempre marcados por sofisticadas ironias, provocam risos que saem sem qualquer esforço. A série encontra nas dificuldades e na melancolia da protagonista um material extremamente rico para o humor, que se coloca como uma força da personagem para evitar o esmorecimento. O resultado que isso provoca no espectador é o contato com uma história que, antes de ser comédia, é extremamente humana. Quem assiste, inclusive, vira cúmplice da protagonista quando ela "quebra a quarta parede" e fala diretamente com a câmera.
Além do trabalho como roteirista, Phoebe Waller-Bridge merece todos os elogios como atriz. Com um timing de humor muito preciso, e muito britânico, ela consegue transmitir todo o vulcão de sentimentos da personagem, que passeia por tristeza, raiva e euforia, muitas vezes, na mesma cena. Também é preciso destacar os desempenhos da sempre ótima Olivia Colman, como a madrasta da protagonista; Sian Clifford, como a irmã insegura; e Andrew Scott.
Falando de morte, frustração, tristeza e outros problemas da vida, "Fleabag" consegue encontrar formas de usar esses temas para fazer rir, cumprindo assim com a função maior da comédia, que é buscar graça nas adversidades. Atingindo isso, a série acaba fazendo o espectador entrar em contato com uma irresistível humanidade, vista, especialmente, na trajetória da protagonista, que, mesmo no fundo do poço, descobre um jeito de ir mais para baixo, ainda que com carisma e um afiado humor.

FLEABAG (duas temporadas disponíveis)

ONDE: Amazon Prime Video

COTAÇÃO: ★★★★★ (excelente)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mesmo com protagonista descaracterizada, "Gabriela" foi bom entretenimento

Final de "Revenge" decepciona e desvaloriza confronto entre protagonistas

The Blacklist apresenta novo gancho para trama central e introduz spin-off arriscado