Reprises de novelas, redes sociais e as mudanças na sociedade

Fotos: Divulgação/TV Globo


As reprises de "Laços de Família" e "Mulheres Apaixonadas", na TV Globo e no canal Viva, respectivamente, têm gerado discussões sobre a forma como temas e personagens são apresentados nas tramas, ambas escritas por Manoel Carlos. Relações de trabalho, machismo, assédio e outras questões aparecem na rotina dos moradores do Leblon com duas décadas de distância do espectador de hoje, inserido em outra realidade e observando a evolução dos debates propostos. Por conta disso, surgem críticas ao autor e apontamentos de que essas novelas "envelheceram mal".

Não é raro que, durante as exibições dos capítulos, as redes sociais recebam comentários sobre a forma que a empregada Zilda (Thalma de Freitas) é tratada na casa de Helena (Vera Fisher) e como aquela relação de trabalho é considerada inadequada. O comportamento machista de Pedro (José Mayer), minimizado por ele e outros personagens do folhetim, e até um estupro praticado pelo primo da protagonista são vistos de outra forma no mundo de hoje, com mais clareza sobre o abuso e menos romantização de uma possível relação de gato e rato, sustentada pelo machismo estrutural.

Curiosamente, enquanto estava preparando esse texto, leio um trecho do livro "O Vermelho e o Negro", clássico do escritor francês Stendhal, que pode enriquecer essa discussão. "Senhores, um romance é um espelho que é levado por uma grande estrada. Umas vezes ele reflete para os nossos olhos o azul dos céus e outras, a lama da estrada. E o homem que carrega o espelho nas costas vós acusareis de imoral! O espelho reflete a lama e vós acusais o espelho! Acusai antes a estrada em que está o lodaçal, e mais ainda o inspetor das estradas que deixa a água estagnar-se e formar-se o charco".

Mais do que simples entretenimento, as novelas são recortes que retratam a sociedade do período em que estão ambientadas. Assim como livros, fotos ou documentos, elas são capazes de mostrar como a tecnologia, a moda, a violência, os hábitos e os comportamentos eram e se transformaram desde então. No caso das obras de Manoel Carlos, conhecido como um cronista do cotidiano, isso é ainda mais evidente. O autor construía personagens, conflitos e relações a partir do que ele colhia das ruas, dos jornais, da convivência com outras pessoas.

O texto de Manoel Carlos é o espelho citado por Stendhal, que alguns se apressam a criticar. Ele nada mais é do que um reflexo daquele tempo, daquelas pessoas, da forma como as questões eram tratadas. Não me parece, nesses casos, que o autor tenha revelado nas tramas os próprios pensamentos e preconceitos. Assim como pode ocorrer com o cinema e a literatura, as novelas são retratos de momentos ou, voltando ao escritor francês, das estradas cheias de lama. Estamos vendo, com olhares e pensamentos evoluídos duas décadas, como era a nossa sociedade, como o machismo era mais naturalizado, como as questões eram menos aprofundadas.

As redes sociais têm um papel importante em toda essa reflexão. Lá atrás, quando "Laços de Família" e "Mulheres Apaixonadas" foram exibidas originalmente, o público não contava com essas ferramentas, que funcionam hoje como caixas de ressonância. As discussões levantadas pelas tramas e personagens tinham um alcance mais limitado, ficavam restritas, por exemplo, às famílias e amigos. Agora, o público vê as novelas e reage a elas nessas redes, alimentando debates e apontando mudanças de comportamento. Essas diferenças são mais evidentes com o avanço da internet, mesmo que nem sempre ela aprofunde no debate.

Antes de condenar a exibição ou, usando um termo da moda, "cancelar" o autor ou a novela, devemos encarar essas reprises como uma boa oportunidade de reflexão e constatação da evolução que tivemos como sociedade, ainda que elas pareçam mínimas e que haja muito a avançar. Essa é uma das funções de alguns produtos de entretenimento e da arte. Propor o confronto entre um retrato e uma nova perspectiva é muito positivo e nos faz caminhar ainda mais.

Pensando em tudo isso, separei alguns comportamentos de personagens desses folhetins que geram discussões e que mostram evolução na forma como são encarados hoje:

- Trabalho doméstico

Zilda, Maria (Idelcéia Santos), Sônia (Priscila Dias) e Yvone (Arlete Heringer). As empregadas domésticas de "Laços de Família" e "Mulheres Apaixonadas" tinham rotinas de trabalho inaceitáveis, mas ainda não totalmente extintas nos dias de hoje. As profissionais ainda não contavam com as mudanças nas regras trabalhistas para a categoria e, por isso, tinham jornadas sem horários definidos. Elas moravam na casa das patroas e, por isso, eram acionadas a qualquer momento para fazer chá ou esquentar o jantar. Por trás dessa relação com a empregada "praticamente da família", há uma herança do período de um Brasil escravagista, quando as escravas estavam sempre à disposição das sinhás. Hoje, a categoria das empregadas domésticas ganhou direitos, os patrões têm deveres mais claros, mas não pensem que os abusos deixaram de ocorrer, apesar da evolução dos pensamentos.

- Machismo

Em "Mulheres Apaixonadas", Cláudio (Erik Marmo) se incomoda com a virgindade da namorada Edwiges (Carolina Dieckmann) e, após uma briga, trai a jovem com Gracinha (Carol Castro). Em uma das tentativas de reconciliação, justifica a atitude como uma "necessidade de homem". Na mesma novela, logo nos primeiros capítulos, Diogo (Rodrigo Santoro) é apresentado como um Don Juan que trai a futura esposa na despedida de solteiro e minutos antes de subir ao altar. Rapidamente, surgem comentários de que aquilo é "coisa de homem", sem importância. Já em "Laços de Família", Pedro encara as mulheres como objetos e se vangloria das "conquistas". Também as deprecia com comentários como "vai para a cozinha" e "isso não é lugar de mulher". Continuamos vivendo em uma sociedade machista, porém repudiamos mais esses comportamentos hoje. Ver a mudança, que ainda não é a ideal, reforça a necessidade de continuarmos esse movimento.

- Estupro

Essa é uma questão relacionada ao tópico anterior e que também envolve Pedro, de "Laços de Família". O administrador do aras da novela contrata a veterinária Cínthia (Helena Ranaldi) e passa a assediá-la, valendo-se de uma posição hierárquica privilegiada e de força física. Ele encurrala a profissional pelos cantos e utiliza falas agressivas. Em uma das cenas, mesmo com as negativas da personagem, Pedro força uma relação sexual. Depois, Cínthia até nega que houve estupro, mas o avanço dos debates sobre consentimento e machismo dizem o contrário. No entanto, refletindo o que acontecia na sociedade, e ainda ocorre, diga-se de passagem, a relação entre os personagens foi romantizada como um caso "gato e rato" e os comportamentos de Pedro justificados como "coisa de macho". Com a reprise do folhetim, vemos que a perspectiva felizmente mudou.

- Violência contra a mulher

Durante uma briga, Diogo dá um tapa na cara da esposa Marina (Paloma Duarte), depois que ela já tinha feito o mesmo com ele. Revoltada, a personagem  de "Mulheres Apaixonadas" se queixa com Silvia (Natália do Vale) e Lorena (Susana Vieira), respectivamente, mãe e sogra. Ela houve comentários do tipo "você também não é fácil" e "o que você fez para ele agir assim?". Já evoluímos o suficiente nos debates sobre violência contra a mulher para entender que nada justifica uma agressão e que qualquer agressão deve ser repudiada e punida com a Lei Maria da Penha. Na mesma novela, vemos Marcos (Dan Stulbach) surrar a esposa Raquel (Helena Ranaldi), usando, inclusive, uma raquete. Ele está inserido em uma trama que cumpre uma importante função social, de alerta às mulheres, e, por conta disso, tem o comportamento repudiado pelos próprios personagens. Fora desse contexto, Diogo não sofre nenhuma punição pela agressão e não importa que a proporção da violência não seja a mesma. Agressão é agressão.

- Assédio e racismo

Carlinhos (Daniel Zettel) agarra a empregada Zilda (Roberta Rodrigues) pelos cantos da casa e não se intimida nem pela presença de outras pessoas para fazer comentários de cunho sexual sobre ela. O adolescente de "Mulheres Apaixonadas" até é repreendido pelo pai Carlão (Marcos Caruso), mas a "bronca" é sustentada por uma visão machista, que tenta justificar o assédio como um comportamento típico dos garotos e seus hormônios. Em "Laços de Família", Danilo (Alexandre Borges) também assedia a empregada Rita (Juliana Paes). Além do assédio, alimentado pelo machismo e de questões de classe, essas tramas refletem o racismo que atinge as mulheres negras desde os tempos coloniais, quando homens pensavam que as escravas deveriam servi-los também na cama. Mesmo após o fim da escravidão, essa visão estereotipada e preconceituosa continuou presente na sociedade e aparece reproduzida nos comportamentos de Carlinhos e Danilo, ainda que se possa alegar que eles não faziam isso de forma consciente.

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