"Pé na Cova" ri das peculiaridades humanas e provoca reflexão sobre passagem do tempo

Divulgação/TV Globo
Era só mais um dia no Irajá. Ruço (Miguel Falabella) levanta da cama e ergue as portas de sua funerária. Ali, lida com todos os tipos de pessoas e situações: tem uma filha que ganha a vida com pornografia e sexo na internet; um filho vereador, que sempre está pensando na próxima oportunidade para desviar recursos públicos; uma cunhada homossexual e um vizinho travesti, que o obrigam a enfrentar seus preconceitos; uma amiga diagnosticada como louca, que vive em uma linha tênue entre realidade e delírio; e uma esposa que encara a vida bêbada de gim. Mas, como já dito, esse era só mais um dia no Irajá de "Pé na Cova", série que encerrou sua trajetória na televisão nesta quinta-feira (7), depois de cinco temporadas.
A reunião de tantos tipos diferentes não estava ali por mero recurso cômico. Escrita por Falabella e sua equipe de colaboradores, a série retornou a um tema comum na carreira do autor: as peculiaridades humanas e o respeito às diferenças. Diante de tantos personagens desajustados, que, algumas vezes, podiam fazer escolhas moralmente condenáveis, a história, na verdade, propunha ao público um olhar generoso sobre o diverso, o incomum. Neste sentido, Ruço funcionava como o centralizador desse sentimento. Diariamente, o protagonista era confrontado por todos os seus preconceitos, fossem eles de qualquer natureza. Um passeio pela sala de sua casa ou pelas ruas do bairro o faziam encarar a diversidade de frente e, para mostrar ao público a força da tolerância, por amor, aquele homem singelo e bronco era capaz de superar tudo.
Falando, ainda, do protagonista, Ruço também simbolizava a esperança. Diante de tantas condutas ilícitas, que envolveram a negociação explícita de venda de crianças, por exemplo, ou os arranjos políticos escusos que envolviam o mandato do filho Alessanderson (Daniel Torres), o dono da funerária sempre estava dispostos à contestação, ao questionamento moral, mas, constantemente, acaba levando a pior e tinha que observar a prática daquilo que condenava. Ruço tinha esperança no trabalho, acreditava em uma vida melhor, tanto para ele como para a comunidade.
Divulgação/TV Globo
"Pé na Cova" teve um texto raro de se ver na televisão. Comédia rasgada sim, mas que sempre levava à reflexão. Sobre o quê? Sobre a vida, as escolhas, os caminhos, a solidão, a melancolia, a honestidade, o respeito e o amor, por mais estranho que ele seja. Situações absurdas e diálogos rápidos e igualmente insanos eram interrompidos para citar "Sheikespier", William Shakespeare para quem não tem tanta intimidade com o autor como os moradores do Irajá. É bem verdade que as frases atribuídas ao dramaturgo nunca eram, de fato, dele, mas dali saíam boas risadas e, não raros, momentos de reflexão.
A reflexão, aliás, foi além da tolerância às diferenças. A série também falou, mesmo que veladamente, sobre a morte e a passagem do tempo. Tempo esse que pode passar depressa e de forma implacável, levando aqueles que amamos e deixando para trás as recordações de um momento feliz. Tempo que muda a nossa vida e, de uma hora para outra, nos apresenta um novo enredo. Ruço começou a terminou a série fazendo aniversário, mostrando, assim, as transformações que o tempo lhe impôs e que ele, tão dificilmente, tinha que aceitar.
"Pé na Cova" só pode ser essa comédia reflexiva, pois, além do texto, tinha atores espetaculares no elenco, a começar por Falabella, em seu trabalho mais maduro na TV. Também teve Marília Pêra, que, em seu último trabalho antes de morrer, emprestou sua grandeza para a alcoolizada, e sábia na mesma proporção, Darlene, que, com a ajuda de sua intérprete, entrou para a história da televisão brasileira. Da mesma forma, Luma Costa, Lorena Comparato, Mart´nália, Eliana Rocha (hilária como Luz Divina), Rubens de Araújo, Maurício Xavier, Niana Machado, Diogo Vilela e tantos outros brilharam no Irajá.
Como tudo que é bom dura pouco, "Pé na Cova" sai de cena como uma das melhores comédias da televisão brasileira. Com um texto inteligente, fez o público rir de mazelas e das peculiaridades do ser humano. O riso provocado, no entanto, não era de deboche, mas de identificação e de reflexão sobre tolerância e respeito, afinal, alguém é normal? "Todos nós, de certo ângulo, somos loucos", disse o excêntrico Doutor Zoltan (Vilela) em um dos últimos capítulos. O papel foi cumprido, o público que fique com os bons momentos e as reflexões. Agora, o pano caiu e, como disse Shakespeare, ele mesmo, "o resto é silêncio".

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