Abordagem rasa e texto didático fazem "O Mecanismo" falhar como dramaturgia e reflexão

Os esquemas de desvios de dinheiro escancarados, nos últimos anos, no Brasil, revelaram operações extremamente organizadas e complexas para repasses irregulares de verbas públicas, formações de cartéis e envios de quantias astronômicas para o exterior. Toda essa complexidade, que espanta os brasileiros a cada nova revelação, passa longe de "O Mecanismo", produção brasileira que estreou a primeira temporada no Netflix.
Criada por José Padilha e Elena Soárez, a série inspirada nas investigações da Operação Lava Jato, da Polícia Federal, chega ao serviço de streaming com a intenção de desvendar todas as engrenagens do "mecanismo" que movimenta a corrupção do país. Tudo isso, no entanto, só fica na intenção por conta da abordagem superficial do roteiro, que evita a complexidade dos esquemas e se rende ao didatismo para "dar uma aula" sobre o tema.
"O Mecanismo" começa focando na rivalidade entre o delegado Marco Ruffo (Selton Mello) e o doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Diaz). Criando uma trama de "gato e rato", a série mostra os esforços do policial em prender o rival, que sempre se livra dessa ameaça por conta dos contatos com pessoas importantes. A perseguição culmina na aposentadoria de Ruffo, forçado por um laudo médico a deixar as investigações.
A história dá um salto no tempo e passa a retratar o começo dos trabalhos de policiais federais na Lava Jato, considerada a maior operação brasileira de combate à corrupção. Pistas, escutas e documentos levam a investigação, comandada agora pela delegada Verena Cardoni (Caroline Abras), discípula de Ruffo, de volta a Ibrahim, que, nessa altura, está mais envolvido com o poder político que comanda o país.
As descobertas da Polícia Federal se ampliam e passam a envolver decisões do Ministério Público Federal e do juiz Paulo Rigo (Otto Jr.), que claramente retrata Sérgio Moro, magistrado responsável pelas ações da Lava Jato em primeira instância. As indicações políticas envolvendo a corrupção na Petrobrasil, estatal fictícia que centraliza muitos esquemas; o envolvimento de políticos conhecidos; e a atuação das maiores empreiteiras do país no processo também são retratados na série, que permite que o espectador mais informado faça as devidas associações aos nomes das figuras reais.
Quem esperava entender mais profundamente os meandros da Lava Jato se decepciona com "O Mecanismo". O roteiro, que se propõe a desvendar os caminhos da corrupção, procura ignorar a complexidade dos esquemas que cobrem rastros e criam labirintos para esconder enormes quantias de dinheiro. Ao invés disso, a série opta por se manter superficial e foca apenas nos resultados da operação, deixando de lado a contextualização dos planos para focar nas prisões e nos valores descobertos.
É curiosamente contraditório que, apesar da rasa abordagem, a série não se furte a dar explicações ao espectador, mas é isso o que acontece. Só que o roteiro escolhe detalhar os acontecimentos mais óbvios, usando, para isso, uma linguagem didática, que, várias vezes, mais parece uma aula sobre a Lava Jato. Somam-se a isso as frases batidas e de efeito ditas pelos personagens, que quase sempre aparecem de uma narração desnecessária, que só serve para reforçar algo extremamente nítido na cena. "A corrupção é um câncer", "O Brasil não é para amadores" e outras sentenças sobre a justiça brasileira são alguns exemplos de senso comum, que a produção repete à exaustão.
Também é interessante prestar atenção às tentativas da história em mostrar que não está se posicionando e apenas relata os fatos que construíram a operação. Mesmo trazendo cenas que "apontam o dedo" para políticos dos mais variados partidos, "O Mecanismo" deixa a sensação de que está sim sendo conduzida por convicções políticas, o que frustra a intenção, proposta pelo próprio roteiro, de mostrar que "a esquerda e a direita" servem ao "mecanismo".
O roteiro também banaliza a importância das reviravoltas, criando situações e conflitos desnecessários em tentativas frustradas de movimentar a trama. O suspense sobre a ausência de Ruffo, logo nos primeiro episódios, e descobertas reveladoras, que surgem do nada, sobre a investigação são alguns exemplos disso.
Mesmo tendo bons atores à disposição, "O Mecanismo" falha na construção dos personagens entregues a eles, tão rasos quanto as explicações sobre os esquemas. A rivalidade entre Ruffo e Ibrahim é muito mal explorada e, em certos momentos, soa inverossímil. Os conflitos pessoais de Verena, que poderia ajudar na composição da personagem, parecem "jogados" para tentar justificar os caminhos escolhidos pela história.
Com toda a temporada de oito episódios disponível, "O Mecanismo" é mais uma obra que procura inspiração na realidade para tentar analisar o Brasil e explicar as engrenagens que constroem os muitos esquemas de corrupção que estão as páginas dos jornais. Mesmo filmada com competência e tendo bons atores, a opção por um caminho superficial e o didatismo do texto resultam em um sentimento de repetição de senso comum, que falha como dramaturgia e como tentativa de ajudar um povo a olhar para dentro de si.

O MECANISMO (primeira temporada)

ONDE: Netflix (todos os episódios disponíveis)

COTAÇÃO: ★ (ruim)

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