Trio feminino sustenta melhor e mais polêmica temporada de "The Crown"

Divulgação/Netflix

Filmes e séries com temática histórica ou biográfica costumam render discussões e polêmicas, especialmente quando não há um controle criativo das figuras retratadas. De certa forma, é esperado que isso aconteça, afinal, a dramaturgia permite e até exige certas liberdades e imprecisões para resultar em um produto mais atrativo para o público. "The Crown", série da Netflix, sobre a reinado da rainha Elizabeth II, chega ao ápice dessas reações na quarta temporada, especialmente por conta da proximidade dos acontecimentos abordados e da qualidade do roteiro, amparado na força de três personagens femininas.
Ambientados na década de 80 e no início dos anos 90, os novos episódios começam com a formação do governo de Margaret Thatcher (Gillian Anderson), personagem que é uma das bases da temporada. No posto de primeira-ministra, após uma vitória do Partido Conservador nas eleições, a política enfrenta problemas econômicos, como altos índices de desemprego e inflação; uma guerra contra a Argentina pelo controle das Ilhas Malvinas; e uma crise interna alimentada pelo descontentamento de aliados e pelas divergências com a rainha Elizabeth (Olivia Colman).
A soberana do Reino Unido é o segundo pilar de sustentação da quarta temporada. Já experiente e acostumada aos deveres impostos pela Coroa, a protagonista tem um novo desafio com a chegada de Tatcher a Downing Street. Com uma origem diferente da primeira-ministra, a rainha sente dificuldades em se alinhar ao novo governo, chegando a violar a imparcialidade exigida a um ocupante do trono para tornar públicos os desentendimentos com Tatcher.
A proximidade com os filhos é outro conflito da rainha na temporada. Mantendo certa distância regulamentar deles, respeitando tradições e protocolos, Elizabeth II passa a questionar o fato de não estar envolvida nas vidas dos herdeiros, apenas quando as obrigações da realeza exigem ou quando a imagem da Coroa é abalada. Da relação de Charles (Josh O´Connor), o primeiro na linha de sucessão, com Diana (Emma Corrin), surge um dos principais desafios da protagonista: impedir que crises pessoais maculem ou desviem a imagem da monarquia.
Diana é a última peça do tripé que ampara a quarta temporada de "The Crown". Apesar de mostrar a aproximação e os preparativos para inclusão da personagem na família real, o foco principal da série é a rotina do casamento entre a princesa e Charles, marcada por desentendimentos, infidelidade e até pela inveja que o príncipe sente da imagem que Diana constrói junto aos súditos. A infelicidade conjugal estimula na princesa, inclusive, um quadro de bulimia.
Os conflitos de Margaret Tatcher, Diana e da rainha Elizabeth têm em comum o fato de serem provocados pela necessidade de cumprimento de deveres que nem sempre estão alinhados aos desejos pessoais das personagens. Além de evidentes no roteiro, esses conflitos ganham força com as interpretações das atrizes, todas ótimas e muito envolvidas com as características das figuras que retratam.

Divulgação/Netflix

Pela proximidade da época, figuras e acontecimentos abordados, "The Crown" registra a temporada mais polêmica exibida até agora. Situações e detalhes particulares da vida das figuras retratadas vêm sendo alvo de contestações, inclusive por integrantes da família real, que, como vimos na série, não manifestam opiniões publicamente, mas vazam as informações através de "fontes oficiais" do Palácio de Buckingham.
É preciso lembrar que, apesar da retratação de fatos históricos e de se basear em biografias, "The Crown" é dramaturgia, o que permite o uso de recursos criativos para que a proposta do roteiro seja melhor absorvida pelo público. No episódio em que um homem invade o palácio para se encontrar com a rainha, por exemplo, apesar de ter sido construído a partir do que realmente aconteceu, alguns detalhes são ficcionais e servem à trama para contextualizar a aflição de parte dos britânicos com a economia da época e para destacar características da personalidade de Elizabeth II.
Outra abordagem criticada é a da relação entre Charles e Diana. Por mais que o roteiro seja escrito a partir de informações tornadas públicas e relatos, inclusive da própria princesa, que deixou dados registrados em áudio, situações são condensadas e potencializadas para que o espectador se envolva e receba uma ideia aproximada do que realmente aconteceu. Diferente do documentário, a ficção cria uma proposta de narrativa, que acaba servindo ao público também como convite a uma pesquisa posterior sobre os fatos.
Não é apenas nas polêmicas que "The Crown" chegou ao ápice, mas também na qualidade da dramaturgia apresentada. Há uma construção meticulosa dos episódios, que estabelecem conflitos internos e externos aos personagens com a intenção de humanizar as figuras que se escondem atrás das aparências exigidas pela Coroa. A produção também levanta questionamentos sobre tradições, mudanças na sociedade e traumas causados por frustrações e isolamentos.
A quarta temporada faz "The Crown" manter o título de joia da coroa da Netflix. Além de aumentar o nível de polêmicas, por conta da proximidade do período retratado pela trama, a série elevou ainda mais a qualidade da dramaturgia apresentada. A julgar pelo que está por vir, especialmente no que diz respeito aos conflitos da trama sobre a princesa Diana, essas duas características podem ganhar ainda mais força.

Em tempo: É sempre interessante buscar materiais complementares sobre os acontecimentos históricos retratados em um produto de entretenimento como "The Crown". Sugiro um mergulho em pesquisas de notícias sobre alguns acontecimentos retratados na trama, como a invasão ao Palácio de Buckingham e a descoberta de primas da rainha internadas em uma instituição de saúde mental. Para complemento de informações sobre a família real, boas dicas são a série "The Royal House of Windsor" e o documentário "Diana: In Her Own Words", ambos disponíveis na Netflix.

THE CROWN (quarta temporada)

ONDE: Netflix (todos os episódios disponíveis)

COTAÇÃO: ★★★★★ (excelente)

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