"Doutor Castor" mergulha na vida de bicheiro e escancara conveniência que cerca relações

Reprodução/Globoplay

Quando retratados em produtos de entretenimento, geralmente, os bicheiros aparecem espalhafatosos, bonachões e paternalistas, visão que, antes de chegar a essas obras, brotou das ruas, das comunidades que abrigam essas figuras. Para além do folclore que ronda os comandantes do jogo do bicho, a série documental "Doutor Castor" aborda o "lado B" do mundo da contravenção, lugar de demonstrações violentas de poder e crimes protegidos por falsas imagens de benfeitorias. Seguindo os passos de Castor de Andrade, um dos maiores dos contraventores do Rio de Janeiro, a produção também coloca uma lente de aumento em um comportamento que pauta relações pessoais e institucionais no Brasil: a conveniência.

Em quatro episódios, a série dirigida por Marco Antônio Araújo percorre a vida de Castor de Andrade através de imagens, documentos, reportagens e depoimentos daqueles que conviveram com o líder do jogo do bicho na zona oeste carioca no auge do poder dele, nos anos 80 e 90. Controlando toda a estrutura dessa atividade, tida apenas como uma contravenção na época, Doutor Castor, como também era chamado, criou um império do crime sustentado por truculência, banhos de sangue e muito dinheiro.

Para esconder e, de alguma forma, buscar uma legitimação como figura pública relevante, Castor de Andrade também atrelou seu nome a instituições que trariam essa respeitabilidade que ele procurava. Virou, então, patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel, tradicional escola de samba carioca, e dirigente do Bangu Atlético Clube. Essas atividades criaram uma "capa" de benemérito e líder comunitário, visão facilmente adotada pelos moradores daquela região.

"Doutor Castor" apresenta ao espectador um quebra-cabeças cujas peças parecem não encaixar. Como pode um contraventor violento ser idolatrado por uma comunidade? Como um bicheiro cercado por dinheiro e sangue sustenta uma imagem pública de benfeitor da cultura popular e do esporte? A resposta para essas perguntas está na origem da estrutura do jogo do bicho no Rio.

Através dos depoimentos de jornalistas e autoridades, como a juíza Denise Frossard, que prendeu e condenou a cúpula carioca do jogo do bicho, a série documental destrincha a atuação do grupo liderado por Castor de Andrade, que adotou métodos e símbolos da máfia italiana para construir esse império de crimes por aqui. A influência dos criminosos da Itália é tão grande que até fez com que Castor também passasse a ser conhecido como "capo di tutti capi" ou, buscando uma tradução que se adeque mais ao universo dele, bicheiro dos bicheiros.

Por conta dessa inspiração, Castor de Andrade e os bicheiros que ele comandava "vestiram" suas ações com paternalismo, dissimulação e proteção dos menos afortunados. Essa imagem é facilmente incorporada à comunidade, especialmente quando as pessoas que vivem ali não são totalmente atendidas pelo Estado e têm menos oportunidades. São nessas brechas que os contraventores procuraram se instalar e passaram a ter respaldo.

Reprodução/Globoplay

Se pararmos para pensar, com o passar do tempo, a figura do bicheiro foi dando lugar ao traficante e, depois, ao miliciano nessas comunidades, oferecendo proteção, assistência financeira, ocupações e alcançando qualquer outra necessidade que os governos não atendem. São desses espaços que nascem as complexidades desses personagens, caçados por suas ilicitudes e respeitados por suprirem as carências da população que vive ao redor. De alguma força, ainda há relação disso com a política, universo que também recebe figuras adeptas dessas práticas.

O caso de Castor de Andrade foi potencializado pela escolha dos meios onde ele resolveu se infiltrar: o futebol e o carnaval, as atividades mais populares entre os brasileiros. Buscando legitimar uma imagem pública, o bicheiro investiu pesado nas ascensões do Bangu e da Mocidade nas respectivas competições que disputavam. Dinheiro vivo e sem fim para recompensar jogadores, comprar adereços, construir extravagantes carros alegóricos, subornar juízes e criar mecanismos de controle, como a Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.

Tanto empenho em construir uma imagem respeitável, para esconder dezenas de homicídios e outras práticas ilegais, revelou, em "Doutor Castor", um comportamento que sustenta muitas relações pessoais e institucionais no Brasil: a conveniência. Não foi difícil para o diretor da série encontrar quem defenda Castor de Andrade com unhas e dentes e frise que havia uma separação entre o contraventor e o dirigente de futebol ou patrono de escola de samba.

Presenteando jogadores com maços de dinheiro a cada vitória, proporcionando alegria aos torcedores com a ascensão do Bangu, socorrendo membros da comunidade necessitados e levando os integrantes da Mocidade à vitória no carnaval, Castor estava, na verdade, comprando respaldo. Quando essas pessoas eram questionadas sobre o contexto violento e ilícito do qual o bicheiro fazia parte, tratavam de tentar separar as funções, dizer que os crimes do "capo di tutti capi" não se misturavam ao futebol e ao samba. As instituições beneficiadas por ele, também por conveniência, sustentavam publicamente essa imaginária divisão de condutas, enquanto elas já estavam mais do que misturadas.

Para quem acredita que todo esse cenário é apenas uma história do passado, a série documental também revela o contrário. A morte de Castor de Andrade, em 1997, depois de prisões e batalhas judiciais, deu início a uma disputa de herdeiros marcada por demonstrações de força e mortes. Em novembro de 2020, o genro do bicheiro, Fernando Iggnácio Miranda, foi morto em uma emboscada. O suspeito do crime é Rogério Andrade, sobrinho do contraventor, que está foragido.

"Doutor Castor" é bem mais do que uma produção sobre Castor de Andrade. Além de mostrar a estrutura do jogo do bicho e o envolvimento do contraventor com o futebol e o carnaval, a série documental também dá destaque para o papel da conveniência em muitas relações pessoais e institucionais. Por mais que pareçam apenas um retrato carioca, ne verdade, os episódios revelam contradições e complexidades de todo um país.

DOUTOR CASTOR (série documental em quatro episódios)

ONDE: Globoplay

COTAÇÃO: ★★★★ (ótima)

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