Final preguiçoso não valoriza boa trama central e "A Regra do Jogo" termina enfraquecida

Divulgação/TV Globo
"Vocês não conseguem entender a abrangência do meu projeto político? Não conseguem entender que gente como eu, como nós, não pode ficar à mercê dessa politicalha que está aqui no país? Não sabe que a gente não pode ficar à mercê dessas leis que só protegem a bandidagem, que só protegem a canalhas?". Esse discurso foi feito por Gibson (José de Abreu), o milionário de aparente reputação ilibada que se revelou o chefe de uma organização criminoso, criada com a justificativa de corrigir os problemas do Brasil e apresentar uma solução à nossa sociedade. 
Pode parecer coisa de novela, mas a fala de Gibson, o Pai da facção de "A Regra do Jogo", folhetim que terminou nesta sexta-feira (11), na TV Globo, se parece com os argumentos de muitas figuras da sociedade brasileira atual, que justificam corrupção, condutas antiéticas e outros desvios de caráter com o discurso de estarem "pensando no país e ajudando o povo a combater o verdadeiro inimigo", não importa ele qual seja, desde que esteja do lado contrário a essa proposta. 
Por conta disso, parecia muito interessante que um personagem e uma trama como essa tivessem espaço no horário nobre da televisão. Seria essa uma oportunidade de voltar aos folhetins que propunham reflexões sobre o Brasil? João Emanuel Carneiro, autor de "A Regra do Jogo", até ensaiou essa discussão, mas acabou deixando tudo na promessa, especialmente na última semana, quando recorreu ao já manjado "Quem Matou?" para encerrar seu folhetim. 
No último capítulo, o mistério, que deixou o nível de curiosidade em praticamente zero, foi revelado e o público descobriu que Gibson foi morto por Kiki (Deborah Evelyn), a filha do milionário, que decidiu se vingar dos anos em que passou em um cativeiro por ter descoberto o identidade do Pai da facção. Após os questionamentos de Belisa (Bruna Linzmeyer), também foi revelado que Nora (Renata Sorrah) e Nelita (Bárbara Paz) sabiam do crime, mas decidiram acobertar e defender Kiki. Para a trama, o assassinato de Gibson pareceu um recurso preguiçoso e absolutamente incoerente com a história que se apresentava. Dá para dizer que o verdadeiro assassino do Pai foi a falta de criatividade.
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Outra revelação de um mistério desnecessário da novela foi a do assassinato de Djanira (Cássia Kis), sempre sombra de dúvidas, uma das melhores personagens da trama, morta durante a festa de casamento da filha Tóia (Vanessa Giácomo). Durante um confronto com Zé Maria (Tony Ramos), Juliano (Cauã Reymond), o filho do bandido, questiona o envolvimento do pai no crime. Um flashback, então, revela que foi Zé Maria quem atirou na mãe de Romero Rômulo (Alexandre Nero).
Por falar no protagonista, Romero foi morto por Zé Maria em um confronto. Antes de morrer, o ex-vereador defendeu Juliano e matou um capanga da facção. Já Atena (Giovanna Antonelli) consegue dar um tiro em Zé Maria e fugir com Ascânio (Tonico Pereira) para Veneza, onde começam a aplicar golpes que envolvem a doação de fundos a uma falsa entidade que cuida de pessoas necessitadas. Ela terminou ao lado do filho de Romero, que recebe o mesmo nome do pai. Zé Maria, em mais um final preguiçoso, termina apenas atrás das grades.
Com uma história central muito interessante, "A Regra do Jogo" chegou ao fim enfraquecida. Os desfechos dos acontecimentos que envolveram a facção foram mal desenvolvidos e não justificaram a importância dada ao enredo durante os meses do folhetim. Gibson sempre deu a entender que a organização criminosa era muito abrangente, envolvendo diversos setores da sociedade, Por isso, o desaparecimento total dos bandidos após a morte de Gibson, Zé Maria e Tio (Jackson Antunes) soou incoerente e vazio. A discussão sobre o lado político da facção também deixou a desejar e, no fim, acabou sem espaço.
Um grande acerto da trama de João Emanuel Carneiro foi a construção dos personagens e os conflitos envolvendo a complexidade do ser humano. O maniqueísmo passou longe de tipos como Romero Rômulo, o ex-vereador que usava a fachada de uma ONG para recrutar "soldados" para a facção, e Zé Maria, um impiedoso bandido que conseguia separar sua conduta do amor que sentia pelos filhos. Além desses, Tóia, Atena, Ascânio, Kiki e Juliano contrariaram os rótulos de "mocinho" ou "vilão". Em "A Regra do Jogo", o autor propôs personagens mais críveis e em conflito constante com o lado bom e o ruim, mostrando, inclusive, que atitudes louváveis podem vir de pessoas "condenáveis", e vice-versa.
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Assim como em outras tramas de Carneiro, "A Regra do Jogo" tinha uma história central tão forte e presente que a presença de núcleos secundários se tornou praticamente inútil para o desenvolvimento do folhetim. Histórias como a da família de Feliciano (Marcos Caruso), dos dramas existenciais de MC Merlô (Juliano Cazarré) e das trocas de casais entre Tina (Monique Alfradique), Rui (Bruno Mazzeo), Indira (Cris Vianna) e Oziel (Fábio Lago), andaram em círculos e, lá pelo meio da novela, deixaram de divertir. Talvez se "A Regra do Jogo" fosse uma novela mais curta ou um seriado, tornando desnecessária a presença de outros núcleos, aí sim o enredo central fosse melhor desenvolvido.
É necessário, ainda, fazer menção a alguns nomes do elenco que foram responsáveis pelos bons momentos da novela. Alexandre Nero, Giovanna Antonelli, Tony Ramos, José de Abreu, Cássia Kis, Vanessa Giácomo, Tonico Pereira e Deborah Evelyn elevaram o nível do folhetim com suas atuações precisas e construídas fora dos padrões vistos, geralmente, na televisão. Parte desse mérito também deve ser dado a diretora Amora Mautner, criativa e muito competente.
No fim, "A Regra do Jogo" não chegou a ser um desastre e até construiu, durante os meses em que ficou no ar, bons momentos. O folhetim, no entanto, chegou ao fim enfraquecido, não cumprindo, especialmente, as promessas feitas sobre a importância da facção. Seria importante, para o atual momento, que uma novela resgatasse o hábito de discutir o país e os brasileiros, como foi feito nos anos 80 e início dos 90, mas isso ficou apenas na vontade.

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