"Anitta: Made in Honório" se destaca por transparência de registros e levanta boas discussões

Divulgação/Netflix

Documentários e filmes biográficos sempre levantam discussões sobre a escolha do que é mostrado ao público, visando sempre a conservação de uma imagem pública construída pela figura retratada. Essa tendência ao produto "chapa branca" se acentua quando há interesses familiares envolvidos ou se o próprio personagem faz parte do projeto. "Anitta: Made in Honório", série documental lançada pela Netflix, se diferencia de outras obras do gênero por esconder menos do espectador detalhes que a maioria dos artistas prefere camuflar. O resultado disso é bem positivo para o entretenimento proposto e ainda levanta debates muito pertinentes.
Em seis episódios, a série documental segue os passos da cantora Anitta, inserida em uma rotina movimentada de shows, reuniões, ensaios, contato com os fãs e poucas horas de lazer. Acertadamente, a produção divide os registros feitos em capítulos temáticos, o que organiza melhor para o espectador as várias facetas da artista.
Antes de qualquer coisa, independente de gosto musical, é preciso reconhecer Anitta como uma artista de relevância para o cenário no qual está inserida, responsável por mobilizar milhares de fãs e por movimentar uma cadeia de profissionais, que, inclusive, vai além do núcleo que atua diretamente com ela. Como mostra a série, a cantora pode ser considerada a CEO de todos os negócios que levam o nome dela, o que implica em um controle total sobre decisões, das mais simples às complexas. Isso tudo fica ainda mais importante por essa posição ser ocupada por uma mulher, levando em conta o fato de vivermos em uma sociedade machista e que ainda resiste a uma equidade salarial e de oportunidades.
A maior qualidade de "Anitta: Made in Honório" é o grau de comprometimento da artista e da equipe de trabalho dela em levar ao público o retrato mais transparente possível sobre aquela rotina. É claro que eu não sou ingênuo de considerar que não há filtros no produto final, inclusive por Anitta e a família serem os produtores executivos da série. Há controle sobre as imagens escolhidas e isso fica claro em vários momentos que a câmera não acompanha ou opera com restrições, mas é preciso elogiar a iniciativa em esconder menos detalhes do espectador.
A maioria das figuras públicas não aceitaria uma exposição como a de Anitta em "Made in Honório". As imagens da série documental mostram momentos de fraqueza, esgotamento emocional, conflitos com funcionários, ofensas e conversas muito íntimas. Não por acaso, essas são as sequências da produção que levantaram mais polêmicas até aqui, mas precisamos entender um pouco de onde surge pelo menos uma parte dessa controvérsia.
O relacionamento com a equipe de trabalho é o principal alvo das polêmicas. Através de imagens e depoimentos, vemos Anitta chamando a atenção dos funcionários de forma ríspida, por vezes muito grosseira, e colocando-os em situações constrangedoras diante de todo o staff. Isso sem contar os relatos sobre a falta de consideração da artista com o tempo e as condições para o cumprimento de tarefas delegadas por ela, algumas fruto de ideias que surgem em momentos absurdos.

Divulgação/Netflix

Graças ao nível de transparência do projeto, esse ponto da série documental permite que dois aspectos possam ser analisados. O primeiro é que muitas das críticas feitas sobre o lado CEO de Anitta surgem da cultura machista da sociedade. Um homem em uma posição de administração, adotando as mesmas atitudes e a forma de falar da cantora, é reconhecido publicamente como gestor eficiente, solucionador de problemas e outros tantos adjetivos que o mundo corporativo gosta de usar. Agora, quando uma mulher assume esse papel, ela é tida como histérica, megera, emocional e impaciente.
Mulheres em posição de comando ainda são vistas pelo machismo com desconfiança. Por conta disso, geralmente, precisam mostrar o dobro de dedicação e da capacidade de liderança. Se é assim no mundo corporativo, imagine para uma artista que rebola e sensualiza em frente às câmeras. Anitta gerencia vários negócios, dirige clipes, cuida de orçamentos, orienta coreografias, se preocupa com a logística da produção de shows e, enquanto faz tudo isso, ainda tem o trabalho dobrado de provar para alguém que é capaz.
Abro um parênteses na questão profissional para destacar que o machismo também pode provocar julgamentos sobre a vida pessoal de Anitta, além, é claro, do falso moralismo. A cantora fala abertamente sobre conquistas e dá detalhes íntimos de relacionamentos com homens e mulheres, o que, convenhamos, chama mais atenção pelo fato de vir de uma mulher. Muitas rodas de homens em bares dizem o mesmo, usando termos semelhantes, e não chocam tanto.
Voltando ao campo do trabalho, por mais que muitas das críticas venham do olhar machista do mundo, há uma segunda reflexão que precisa ser feita. "Anitta: Made in Honório" mostra sim ofensas e abusos de uma relação entre patrão e empregados, independente do gênero de quem os pratica. Pulso firme e liderança não podem ser confundidos com desrespeito e falta de educação. É até possível entender que qualquer se humano está sujeito aos excessos, ao erro, mas, se esse tipo de comportamento é repetitivo, cria um ambiente aberto ao assédio moral e outras violências.
Longe de mim querer dizer que a série documental mostra relacionamentos profissionais que já chegaram a esse extremo, mas acredito que as cenas exibidas podem iniciar reflexões necessárias sobre o tema e até reavaliações de conduta, inclusive da artista. É louvável para o projeto que esses momentos não tenham sido excluídos na edição, mas também seria interessante que isso servisse para que a própria Anitta fizesse uma análise aprofundada e pública sobre como esses excessos afetam os seres humanos que a rodeiam e suas relações profissionais. Poderia ser uma boa contribuição, já que ela influencia um número enorme de pessoas e até um mercado.
"Anitta: Made in Honório" é um ótimo recorte da vida de uma artista que comanda vários negócios; convive com a solidão, apesar de nunca estar sozinha; vive intensamente desejos e paixões; aproveita os raros momentos com a família; grita com funcionários; e que enfrenta comportamentos e críticas em diversas frentes para provar que é capaz. A escolha de reduzir o limite do filtro do que é mostrado ao público nessa rotina imperfeita gera debates muito oportunos sobre o machismo da nossa sociedade e os limites das relações profissionais. Se o interesse musical não for um atrativo, garanto ao espectador que essas reflexões fazem a maratona vale a pena.

ANITTA: MADE IN HONÓRIO (série documental em seis episódios)

ONDE: Netflix

COTAÇÃO: ★★★★ (ótima)

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