"Game of Thrones" queria "mitar", mas acaba apressada e desvalorizando personagens


Antes mesmo de chegar ao episódio final, exibido neste domingo (19), "Game of Thrones" já estava com lugar garantido entre as grandes séries da televisão mundial, espaço, diga-se de passagem, conquistado por inúmeras qualidades e a capacidade de arrebatar milhares de espectadores. A produção, baseada até certo ponto nos livros de George R.R. Martin, tem um diferencial: talvez seja a que mais se beneficiou da repercussão alcançada nas redes sociais. 
Tentando aqui fazer um exercício de memória, não consigo, no momento em que escrevo essas linhas, pensar em outra, no panteão das grandes, que tenha lidado com esse fenômeno de forma tão intensa. "The Sopranos" e "Friends", por exemplo, terminaram antes que essas redes virassem o que são. A excelente "Breaking Bad", justiça seja feita, estourou mais e virou cultuada depois que acabou. Já "Game of Thrones" foi erguida ao Olimpo, por likes e tuítes, antes do fim, mas, para a história, isso não fez bem.
Para chegar ao último episódio, é necessário refletir sobre o que veio antes. Em seis temporadas, "Game of Thrones" construiu uma trama sólida e capaz de arrebatar os espectadores, que eram semanalmente alimentados por sequências que instigavam e geravam muitas teorias. Nesse período, a série impôs um tempo próprio e fundamental para a evolução do arco narrativo dos personagens, que passaram por várias provações para crescer na história. Com a decisão de encerrar a produção em duas temporadas reduzidas, para aproveitar essa comoção e evitar o fantasma do desgaste, a trama mudou de ritmo e os problemas começaram.
No sétimo ano, já sem tempo a perder e tendo que aproximar personagens afastados por narrativas diferentes, a série acelerou grandes encontros e sequências. Nessa altura, "Game of Thrones" já era um fenômeno das redes sociais e cada cena representava centenas de milhares de tuítes e compartilhamentos. Mesmo assim, a trama conseguiu manter sólidas as bases que tinha construído até ali. Isso mudou com a estreia da última e aguardada temporada.
Com tantos encontros, guerras e destinos para encerrar, os roteiristas apressaram o passo ainda mais, o que acabou criando e evidenciando inúmeras inconsistências. A mais falada delas, por exemplo, foi a súbita "mudança" de personalidade de Daenerys Targaryen (Emilia Clarke), uma das favoritas para sentar no Trono de Ferro. Se analisarmos a trajetória da personagem, as evidências estavam lá, nas vezes em que a auto-proclamada rainha encontrava justificativas para torturas e violência, sempre em nome de um bem maior, ela dizia. Isso era mostrado, no entanto, apenas através de sinais, detalhes disfarçados de discursos sobre justiça e liberdade. Por isso, não é possível dizer que o caminho que ela tomou na série foi incoerente. Mas, então, alguns podem perguntar, por que as pessoas não gostaram?
Para mim, a explicação para essa pergunta está no ritmo que a produção adotou nos últimos episódios, influenciado pela pressa em dar um desfecho à história. Não houve tempo de tela para uma progressão, uma escalada para as alterações de atitude de Daenerys. Os espectadores que até agora reclamam disso não compraram essa ideia porque, evidentemente, houve um erro de planejamento sobre o arco da personagem, que passou de um ritmo lento de evolução para o extremo de uma hora para outra. Não houve mudança de personalidade, o que ocorreu foi o desejo de resumir a construção da personagem, entregando algo que deveria ter sido maturado diante dos olhos do público.
Daí, muitos vão perguntar: o que essa mudança de ritmo tem a ver com as redes sociais? Bom, na minha opinião, tudo! "Game of Thrones" já era "uma das maiores séries de todos os tempos", rotulada pelos tuítes entusiasmados, quando teve que planejar seu fim. Produtores e roteiristas parecem ter acreditado demais nisso e, levados por comentários de que a série "mitava" a cada novo episódio, construíram sequências finais para repetir essa explosão nas redes, não para fechar o ciclo da história com a qualidade vista até aquele momento.
Influenciados pela pressa e necessidade de grandeza, os roteiros da última temporada pareciam querer apenas gerar repercussão. E conseguiram! Mas, também desvalorizaram jornadas de personagens e enfraqueceram os desfechos deles. A chegada de Daenerys ao Norte, a ameaça do Rei da Noite, o destino de Cersei, a já citada evolução da Mãe dos Dragões, tudo isso, de alguma forma, perdeu força e soou incoerente. Pelo jeito, não importou, já que os tuítes continuaram e, mesmo não agradando, a repercussão continuou sólida, inclusive por alguns poucos acertos na história, do ponto de vista do impacto, que alimentaram essa engrenagem. Nessa altura, os diálogos já não estavam mais tão bem elaborados, alguns caminhos dados à narrativa eram muito discutíveis, mas as cenas que garantiam as "mitadas" continuavam frequentes.
E, depois das mudanças de ritmo e perda do foco de temporadas anteriores, chegamos ao último episódio. Para o desfecho, os roteiristas tentaram resgatar uma sutileza vista em anos anteriores, mas aí já era tarde. A tentativa de buscar alguma profundidade e gerar reflexões destoou de escolhas equivocadas recentes e criou um final apático, sem graça mesmo. Da morte de Daenerys, passando pela definição de Bran (Issac Hempstead Wright) como rei de Westeros e chegando aos últimos momentos de Arya (Maisie Williams), Sansa (Sophie Turner) e Jon Snow (Kit Harrington), tudo gerou uma frustrante indiferença.
Para fazer um destaque positivo, acho que, nas últimas cenas, o conflito sobre as atitudes de Daenerys foi bem explorado, apesar das minhas críticas já feitas sobre o ritmo dessa construção. No diálogo entre Tyrion (Peter Dinklage) e Jon, fica clara a trajetória da Mãe dos Dragões e a ilusão criada sobre a busca dela por justiça, que conseguiu envolver até os espectadores. Acho que o fato de um personagem ter que explicar ao público o arco de outro prova que essa narrativa se perdeu pelo caminho, mas ainda coloco essa escolha como válida, diante do que foi entregue. Esperava, no entanto, mais criatividade sobre a morte da rainha Targaryen.
Os erros cometidos nos últimos episódios não apagaram as qualidades vistas em outras temporadas, mas, com certeza, enfraqueceram e muio o final da série. Os responsáveis por "Game of Thrones" parecem ter se deixado levar pela gigantesca repercussão nas redes sociais e acreditaram que a "guerra" estava ganha. Alguns personagens, no entanto, já tinham mostrado que acreditar nisso pode abalar reinos e, até mesmo, impor derrotas definitivas.
Na ânsia de "mitar" e conseguir acumular centenas de milhares de comentários na internet, "Game of Thrones" se perdeu em certa megalomania e pressa, deixando de considerar que, na verdade, o que fica para sempre é uma boa história, sólida, coerente. Personagens, cenas, expressões e muitas outras qualidades da série vão ficar marcados, mas o final vai ser esquecido ou ignorado logo. 

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