Mesmo com protagonista descaracterizada, "Gabriela" foi bom entretenimento

 
A adaptação de uma obra muito conhecida é sempre complicada e desafiadora. É difícil recriar um universo tão marcante e presente como, por exemplo, o de "Gabriela", romance do escritor baiano Jorge Amado já adaptado para a televisão e o cinema. O autor Walcyr Carrasco foi responsável pela versão mais recente do texto para a TV, cujo último capítulo foi ao ar na sexta-feira (26). Apesar das dificuldades e das referências fortes às outras adaptações, Carrasco superou bem o desafio, construindo uma trama divertida e interessante. Há, no entanto, um porém.
Bom, antes de falar do ponto fora da curva, é melhor detalhar um pouco a história. Nacib (Humberto Martins) precisa de uma cozinheira que o ajude nos afazeres da casa e que prepare quitutes para o Vesúvio, bar de sua propriedade. De tanto buscar, ele encontra Gabriela (Juliana Paes), uma sertaneja que fugiu da seca e foi buscar ganhar a vida em Ilhéus. Apesar da aparência suja e simples, Nacib se encanta pela moça e a contrata.
O jeito simplório e despreocupado de Gabriela não chama apenas a atenção de Nacib, mas de todos os homens da cidade. Apaixonado e com medo de perdê-la para outro, Nacib pede Gabriela em casamento, que reluta muito em virar esposa e diz preferir continuar a viver como está. Quando cede, eles se casam, mas Gabriela vive infeliz com as obrigações que uma esposa precisa ter com o marido e com a sociedade conservadora da época.
Descontente, Gabriela trai o marido ao ceder às investidas de Tonico (Marcelo Serrado). Para não ter sua moral abalada pela traição, Nacib usa uma farsa nos documentos de Gabriela para anular o casamento e, assim, ela sai de casa. A necessidade faz com que, no fim, Nacib chame Gabriela de volta ao posto de cozinheiro do bar e de seu novo restaurante. E a proximidade faz com que os dois se reaproximem e levem a vida da maneira que são felizes, sem as convenções da sociedade.
"Gabriela" também é uma trama sobre as desavenças políticas entre Ramiro Bastos (Antônio Fagundes), o coronel que se considera "dono" de Ilhéus, e Mundinho Falcão (Mateus Solano), um idealista que sonha em acabar com a hegemonia do coronel e trazer o progresso para a cidade. A disputa se complica quando Mundinho decide se candidatar ao cargo de intendente, que Ramiro ocupa há 20 anos. Ao se apaixonar por Gerusa (Luiza Valdetaro), Mundinho cria mais um problema com Ramiro e que faz com que o coronel aprisione a neta em um convento.
No último capítulo, além do amor de Nacib e Gabriela, também vimos que a morte do poderoso Ramiro Bastos pôs fim à disputa com Mundinho, que se tornou o novo intendente de Ilhéus, e permitiu que ele e Gerusa ficassem juntos. Apesar de sutis, os momentos em que Mundinho aparece com uma bengala igual a que Ramiro usava levam a entender que um novo "coronel" está surgindo em Ilhéus...
Coronel Jesuíno (José Wilker): dividido entre o amor da esposa
e a punição pela traição dela perante a sociedade
Escrevendo sobre "Gabriela", percebi que é impossível resumir a história. Por precisar criar outros núcleos para a novela, Walcyr Carrasco aumentou a importância de personagens que, no livro, são apresentados apenas em pequenas passagens. Fazendo isso, o autor criou tramas muito interessantes de acompanhar, como a do coronel Jesuíno (José Wilker), que matou a esposa Sinhazinha (Maitê Proença) por conta da infidelidade dela; da moderna Malvina (Vanessa Giácomo), que luta contra os costumes impostos pela sociedade; de coronel Coriolano (Ary Fontoura), que sustenta sua teúda e manteúda Glorinha (Suzana Pires), que, por sua vez, tem um caso com Josué (Anderson di Rizzi); e de Maria Machadão (Ivete Sangalo) e as quengas do Bataclã, famoso bordel de Ilhéus. A história de Lindinalva (Giovanna Lancelotti), apesar de não existir no livro, também acrescentou bons momentos à novela.
Apesar de todas as qualidades da novela, houve um aspecto de "Gabriela" que prejudicou a história e descaracterizou a personagem-título de Jorge Amado. No romance, Gabriela trai Nacib não apenas porque se sente presa ao casamento e aos costumes da sociedade. Ela também faz isso porque sente desejo por outros homens. A protagonista escrita por Amado é uma mulher que quer viver plenamente sua vida sexual e que tem vontade de transar com outros homens, mesmo tendo um "chamego" por Nacib.
Gabriela, no livro, não queria casar, pois achava que Nacib tinha o direito de se relacionar com outras mulheres e viver outras histórias. E ela desejava o mesmo para si, queria liberdade para chamar outros homens de "moço bonito". Gabriela era uma mulher moderna para a década de 20, em que se passa a trama. Buscava o direito de viver sua sexualidade e desejo plenos, sem as amarras morais que a sociedade estava acostumada.
E daí, eu pergunto: onde foi parar tudo isso na novela? Na versão atual para a televisão, a personagem foi descaracterizada em relação à obra de Jorge Amado e se transformou em uma "mocinha", uma protagonista cuja moral não pode ser contestada e que toma atitudes baseando-se no amor. Gabriela foi quase casta na TV, só "se deitou mais Nacib" e não sentiu desejo por outro homem.
A cena-chave do fim do casamento com Nacib, quando Gabriela é pega na cama com Tonico, é um exemplo gritante da mudança da personagem. Enquanto no livro os dois chegam "as vias de fato", na TV o sexo nem chegou a acontecer. E, esse quase faz toda a diferença para o julgamento que o público pode fazer da protagonista. Gabriela quase transou com Tonico, mas não chegou a fazê-lo. Isso, devem acreditar alguns, "redime" a atitude da personagem junto ao público, transformando-a de "infiel" para "iludida", "enganada" e levada a fazer isso por conta da infelicidade no casamento.
Na televisão, o desejo sexual de Gabriela, que tanto a definia, foi suprimido. O motivo: conservadorismo e medo de o público, que se diz tão moderno e aberto, rejeitar uma personagem que gosta de sexo e defende uma "relação aberta" com o parceiro. Isso vale uma reflexão.
A beata e ex-quenga Dorotéia (Laura Cardoso):
"Jesus Maria José!"
Por conta da habilidade do autor em saber explorar os personagens, muitos atores chamaram atenção. José Wilker, Laura Cardoso, Antônio Fagundes, Ary Fontoura, Maitê Proença, Vanessa Giácomo e Chico Diaz estiveram perfeitos em seus papéis. Ivete Sangalo, Humberto Martins, Mateus Solano, Luiza Valdetaro, Leona Cavalli, Suzana Pires, Anderson di Rizzi, Giovanna Lancelotti, Rodrigo Andrade, Neuza Maria Faro, Genézio de Barros e Gero Camilo também fizeram bonito.
Juliana Paes, muito cobrada e criticada, conseguiu se distanciar das referências a Sônia Braga, que interpretou a personagem em outras ocasiões na TV e no cinema. Até porque, a releitura da personagem foi outra. Juliana, dentro das características e da proposta apresentadas, fez um bom trabalho ao interpretar a mulher que tem "cheiro de cravo e cor de canela".
"Gabriela" foi uma boa novela, muito divertida e com tramas interessantes. Podia ter ousado mais, mostrando a protagonista tal qual suas características na obra literária. Mas, foi assim que o autor viu e preferiu recriar o universo de Jorge Amado. Mesmo com essa escolha, "Gabriela" foi um bom entretenimento.

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