Conflitos da maternidade agregam reflexões sobre racismo e privilégios em "Little Fires Everywhere"

Divulgação/Hulu
A maternidade, das alegrias aos dilemas provocados por ela, é uma tema recorrente em histórias, especialmente nas melodramáticas, cuja influência tem aparecido com mais frequência em diferentes produtos audiovisuais. Bebendo dessa fonte, a minissérie "Little Fires Everywhere" explora conflitos entre mães e filhos, mas acrescenta outros ingredientes a essa mistura, provocando reflexões sobre racismo, respeito às diferenças e privilégios.
Em oito episódios, a produção, disponibilizada na Amazon Prime Video, é baseada no livro de mesmo nome de Celeste Ng e ambientada na década de 90, em Shaker Heights, no estado norte-americano de Ohio. A comunidade se orgulha dos padrões estabelecidos para a vida no local, difundindo exemplos e regras em panfletos, além de produzir fitas cassetes com orientações para os novos moradores. Tudo parece perfeito, mas, por trás desse verniz, ficam escondidos preconceitos e outras atitudes que excluem os que não se encaixam naquele contexto.
A chegada de Mia (Kerry Washington), uma mulher negra, mostra logo de cara como tudo funciona em Shaker. Ao lado da filha Pearl (Lexi Underwood), ela carrega todos os seus poucos pertences em um carro nada luxuoso e não fica muito tempo em cada cidade por onde passa. Enquanto procura uma casa para alugar, a artista dorme uma noite dentro do veículo, o que chama atenção de Elena (Reese Witherspoon), uma moradora orgulhosa e aparentemente exemplar daquela comunidade. A polícia é acionada e, no local, um guarda pede que Mia não fique parada ali.
Por trás das boas intenções de Elena, preocupada com a segurança local, estão escondidos dois tipos de preconceitos: racial e social. Será que a zelosa moradora chamaria a polícia se a motorista fosse branca e se o carro fosse de um modelo mais caro? Expandindo esse questionamento para o policial que aborda Mia, será que ele sugeriria que a mulher não poderia ficar ali se a cor da pele e a condição social dela fossem outras?
Ainda que indiretamente, esse acontecimento acaba fazendo com que Mia e Elena se cruzem. A moradora ilustre de Shaker aluga uma casa para a artista e passa a querer "ajudá-la". Por isso, mais uma vez dizendo estar cercada de boas intenções, oferece um trabalho de empregada a Mia, desconsiderando a carreira e os interesses da inquilina.
A maternidade é o ponto que une e, ao mesmo tempo, afasta as duas personagens. Enquanto Mia tem uma relação muito próxima com Pearl, Elena é mais distante dos quatro filhos, ainda que pareça uma daquelas mães exemplares de comercial de televisão. Trabalhando meio período em um jornal local, ela exige que os filhos se encaixem dentro dos padrões que considera aceitável, o que gera quase sempre conflitos com a filha cacula, Izzy (Megan Scott). A garota tem a personalidade e as escolhas desrespeitadas pela mãe, que demonstra clara preferência pelos outros filhos.
Mesmo tendo uma boa relação com Pearl, Mia passa por alguns problemas com a filha, que fica influenciada pela vida de luxo em Shaker. Esse conflito se agrava quando Elena revela um segredo sobre a origem da garota e que explica, por exemplo, o motivo de tantas mudanças de cidade.
"Little Fires Everywhere" é um novelo de histórias emaranhadas, com a maternidade no centro de tudo. Além das questões com os filhos, Mia e Elena se envolvem em uma disputa sobre a guarda de uma criança, que coloca em lados opostos a mãe biológica do bebê, uma chinesa que vive ilegalmente no país, e um casal norte-americano de muitos recursos financeiros.
Com um roteiro que mostra personagens turvos, sem definições maniqueístas e capazes de atitudes contraditórias, a minissérie se apropria de recursos do melodrama para estabelecer os conflitos, especialmente entre mães e filhas. No caso de Mia e Pearl, o segredo do passado e a falta de maturidade da jovem para entender as diferenças entre elas e os moradores de Shaker são os principais "focos de incêndio" na relação. Já no caso de Elena, a infelicidade da personagem com o rumo que a vida tomou é o que faz com que ela seja tão distante e exija, quase que como uma compensação, que Izzy sufoque a própria personalidade e que Lexie (Jade Pettyjohn) seja um modelo de perfeição.
Divulgação/Hulu
Esses conflitos relacionados à maternidade das personagens se misturam a outros temas relevantes, que também dão profundidade à minissérie. A representação de uma comunidade majoritariamente branca e abastada, que se diz aberta à diversidade e livre de preconceitos, mas que não pratica isso no dia a dia, é uma boa maneira que o roteiro encontra para gerar reflexões sobre racismo e os privilégios daqueles que não são discriminados pela cor da pele e pela condição financeira. Quando vai ao mercado, por exemplo, Mia não encontra o mesmo tratamento que os demais moradores, que não são encarados como se fossem roubar o estabelecimento.
A abordagem policial que Mia sofre na chegada a Shaker se repete mais adiante, porém, com Elena. Quando viaja para investigar a vida da artista, a personagem acaba dormindo no carro e é interpelada por um agente da polícia. A preocupação, no entanto, era outra: Mia era vista como uma ameaça, enquanto Elena parecia uma vítima em potencial da violência. Claramente, é possível ver como o racismo estrutural funciona na sociedade.
"Little Fires Everywhere" também mostra como o preconceito age, muitas vezes, para negar a origem e as diferenças das pessoas, tentando transformá-las no que é "ideal". Isso pode ser visto através de Brian (Stevonte Hart), cuja namorada, Lexie, "esquece" que ele é negro; e do casal que tenta adotar a filha de Bebe Chow (Lu Huang), ignorando a origem chinesa da criança para tentar torná-la norte americana. Em ambos os casos, há a intenção de neutralizar essas características para que elas sejam aceitas naquela ideia equivocada de comunidade.
É necessário destacar o trabalho do elenco da minissérie como um todo, dos jovens aos mais experientes. Kerry Washington, mais uma vez concentrando toda a carga dramática no olhar, e Reese Whiterspoon têm desempenhos que fortalecem a oposição entre as personagens e ajudam a elevar a potência da história. Jade Pettyjohn, Lexi Underwood e Megan Scott também estão muito bem.
Partindo da inspiração do melodrama e dos conflitos gerados pela maternidade, "Little Fires Everywhere" agrega outros temas bastante pertinentes para nos fazer refletir sobre o racismo na sociedade e os privilégios que podem maquiar a realidade, afastando das pessoas a compreensão e a empatia necessárias para que superemos os preconceitos.

LITTLE FIRES EVERYWHERE (minissérie em oito episódios)

ONDE: Amazon Prime Video

COTAÇÃO: ★★★★ (ótima)

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